segunda-feira, 28 de julho de 2008

Carta n°25


Barbaridade, guri! (como dizemos aqui (risos). Estou rindo é de nervosa. Não mereço essas palavras lindas e... teu amor. Bento, Bento, estás mesmo apaixonado por mim, ou estás confundindo nossa amizade?... Bem, é quase o mesmo, não é? Essa amizade tão linda que se estabeleceu entre nós, como se já nos conhecêssemos há anos. Tu és um dos corações mais puros que conheci na minha vida. E só podia ser assim, pois os verdadeiros poetas são puros. Por isso mesmo vejo como são falsos os poetas que atacaram minha irmã, na sua morte, lá naquele Recanto. Bah! mas não quero pensar em coisas ruins. Bem, fiquei nervosa e emocionada com a tua carta... Podes falar tudo, sim, meu Bento, o que se passar no teu coração. Na verdade me faz bem, se tua paixão crescer e me desejares, não reprimirei tuas palavras. Tentarei ser livre e corajosa como a Alma, para quem não havia limites entre corpo e espírito. Tu a leste e sabes do que estou falando... Ah! Mas estou longe daquela liberdade estranha, que algumas pessoas entenderam mal...
A propósito, sim, pedirei ao Guilherme para copiar O Retorno dos Menestréis, para enviar a ti. Esse romance justmente é um dos mais eróticos da Alma, e na primeira parte tem momentos de deixar a gente roxa. Mas é belíssimo. Alma, estava num processo de masoquismo psico-sexual crescente. Ela dizia que tinha necessidade de sofrer no sexo e de ser "punida", açoitada mesmo. Ai! Bento, e eu sei que era verdade, que o tal rabo-de-tatu do meu avô, que ela teria desenterrado de uma arca no nosso sótão e carregava com ela na sua mochila, existia mesmo! A verdade é que aquele episódio da expulsão do paraíso, isto é, do flagrante que a Mutti deu nela e Rôdo, debaixo da macieira, nuzinhos quando crianças ( e que é tão recorrente na sua literatura) a traumatizou muito, e a forma semi-consciente que ela descobriu de sobrepor-se à repressão, foi assumir e incorporar a dor como um ingrediente do prazer, para não ser castrada, não encolher, mas como uma Catarse afrontar o mundo com essa liberdade estranha que se aliava à mesma dor (ela mesma examinou isso no seu romance, colocando essa interpretação na boca do doutor Platus (pelo que me consta, personagem fictício). A doutora Jensen, que a conheceu tão intimamemte e que a amava, acha que na verdade Alma estava doente e que esse processo era progressivo e poderia mesmo levá-la à morte, à auto-destruição. Aline teria abandonado a Alma por isso, e não porque sua mente mudou após ter o bebê de Rôdo. Pasme, Bento, uma guria tão linda e amorosa, queria ser fustigada, até sangrar, na sua exaltação quando se apaixonava e se entregava. E as pessoas normais, se recusavam, claro! E agora eu pergunto, Bento, e se ela levou essa coisa ao extremo. lá na cascata com alguém, e pediu que a matasse, no auge do sexo? Afinal ela foi encontrada nua sob a água. E seu vestido estava intacto, sem manchas sobre a pedra. E ninguém a examinou bem, suas costas por exemplo, logo a deitaram na mesa. Não posso pensar nisso, tenho medo... é escabroso demais. Tenho que afastar esse pensamento...

Lembro-me que já desde guriazinha, Alma saía pelo campo e se desnudava para cavalgar em pelo numa potra que tinha, e que já nadava peladinha no poço cascata, com ou sem o Rôdo, e que essas e outras coisas exasperavam a Mutti, que a surrou uma vez, nuinha como estava, com uma vara-de-marmelo.E eu presenciei tudo, horrorizada, e fiquei com ela em meus braços soluçando muito tempo, lanhada nas costas e bracinhos. Ai! Bento, aí pode ter começado a coisa...

Bem, afora isso o romance O Retorno é divertido e lírico, e o gênio da Alma está todo ali. E o seu humor também, pelo menos no terço final do livro. Alma era um ser complexo: aliava a candura à profundidade, o lirismo ao realismo, o sexo desabrido ao amor puro e idealista. Por isso, creio ela veio para ficar e sua obra ainda está por ser descoberta por um século que teria nescessidade desse amálgama, que tudo exalta e sublima no ser humano. Alma tem a chave para elevar condição do homem atual, amesquinhado pelo cotidiano raso e consumista. Seu romantismo não é piegas e engloba o sexo e as chamadas pequenas perversões, que ela revaloriza com seu humor e ternura profunda. Ela é uma humanista, como o Gabriel Garcia Marques e outros monstros sagrados em vias de extinção.

Quanto ao Benotti, este mandou um e.mail dizendo que virá amanhá para revelar a testemunha fazer-nos saber o que se passou naquela manhã fatídica lá no poço. Pressinto que terei hoje uma noite de cão. Como poderei dormir com um prognótico desses? Nada de consolador pode sair dessa revelação, desse depoimento. E quem será essa pessoa que viu... e viu o quê, como? Ai! meu Deus. Não sei se vou agüentar.
Bento, gostaria que tu continuasses a visitar o blog da Alma, e comentase mais alguma coisa. Tu vistes quantos mais eu coloquei ali, dos sonetos pampianos. Quanto mais os releio e compilo, mais percebo a sua grandeza. A saga interior da Alma está toda ali, principalmente se a leres em sequência e na ordem em que estão os sonetos, debaixo para cima. Há uma sutil progressão: ela chega ao seu útimo e temido Natal, se reconcilia com ele, passa pelo Ano Novo, faz planos, especula, cai em momentos de desolação, nostalgia, vai se despedindo...

Note que começaram a aparecer alguns comentário ótimos de leitores da Alma , que já eram seus fãs, lá do Leia Livro, e reapareceram depois de muito tempo. Eles fazem justiça a grandeza dos sonetos da Alma, que alguns me parecem dos mais belos da lingua portuguesa, entre os maiores. Ela às vezes chega a ser camoniana, não fosse o seu sotaque gaúcho. E a sutileza da guria, seu humor e sua síntese me deixam boquiaberta. Repare nos três últimos que coloquei.
Bem, Bento, acho que estou com verborragia, de nervosa que estou e com medode ficar sozinha. As crianças foram passar uns dias na casa de amigos numa estância vizinha ( eu tratei de tirá-los daqui, pelo que pode acontecer amanhã). E a doutora Jensen está escrevendo seu livro, que acho que é de memórias, e deve ser maravilhoso, não quero interrompê-la. Mas sei que provavelmente vou abusar dela e passar para sua cama de noite, novamente. Matilde está com ciúmes, às vezes quando éramos gurias íamos para cama dela, nossa verdadeira mãe da infância. Agora está ficando rabugenta, muito carola e cheia de velas pelo quarto. Qualquer dia põe fogo na casa.

Bento querido, tenho que tapar a minha boca.

Beijos, beijos

logo nos falamos

tua Lu

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