segunda-feira, 28 de julho de 2008

Carta n°20

Bento querido

Que bom que não me abandonaste! Eu cheguei apensar que te cansaras das minhas lamúrias e te afastaras... Realmente passei por maus bocados e não seria sincera contigo se para impressioná-lo deixasse de falar de minhas fraquezas e posasse de pequena deusa germânica ou heroína dos pampas... Mas é que senti o peso da minha solidão, aqui no papel que me coube de esteio deste lar, com a morte do Vati e da Solange, que estes sim, eram fortes. Alma e eu sempre fomos mais fracas, e eu mais do que era a Alma, bela, mas afinal frágil criatura, que quebrou-se como um fino cristal.
Há dois dias esteve aqui, novamente o nefasto Benotti, e como um furacão praticamente interditou o casarão e a estância toda com seus homens, e organizou o interrogatório geral. Começou pelo Galdério, e fez uma verdadeira inquisição, apertando e torturando mentalmente cada um de nós. Nada lhe escapava. Era uma verruma entrando até nos pensamentos mais íntimos de cada um. Ah! Bento , eu precisaria ser uma escritora como a Alma para descrever esses interrogatórios, suas entrelinhas e expressões fisionômicas. Galdério , Matilde e a doutora Jensen foram dignos e até heróicos em seus depoimentos. Algum dia vou tentar transcrevê-los tal qual me foi dado ouvir de primeira ou de segunda mão, pois logo o delegado percebendo a força que nos dávamos uns aos outros passou a interrogar reservadamente, a portas fechadas, inclusive para melhor torturar. E logo vi que ele me visava, esperava a hora de me atingir, de me tocar e fazer sofrer nem que fosse só mentalmente. Sim, pois suas mãos se crispavam no ar, em direção à minha cabeça e aos meus ombros, e eu via que ele gostaria de me agarrar. Ele olhava meu corpo, meus seios, através da roupa e me despia com os olhos, obscenamente. Eu... me senti nua, violentada, em farrapos. Ah! Bento, não sabes o poder de um homem diabólico como esse! E, no entanto, que poderia eu dizer? Que sei eu? Não compreendo o que se passou com Alma, pelo menos no nível das circunstâncias de sua morte embora me pareça conhecer sua alma doce e cristalina como as águas daquele poço. Qur sei eu do que aconteceu? Eu nem estava aqui na estância, ai de mim! Quisera estar com ela, lutar e morrer com ela...
Saí tão abalada, como se tivesse culpa da morte da nossa sagrada Alma, só por não estar aqui para defendê-la, cuidar dela, encerrá-la no útero da minha alma para sempre, a doce Alminha criança eterna da Natureza, princesinha poeta que não poderia te sido deixada tão só neste mundo. Ai! Patricia chorava, e Pedrinho queria esmurrar o delegado.
Meus gêmeos Hans e Christian estavam mais calados do que nunca e Rôdo foi o único que gritou com o delegado e se exaltou, quase agredindo-o por revide ( o que o delegado bem gostaria) eu ouvi e senti, atrás da porta.
O Grande Inquisidor afinal retirou-se prometendo voltar. Seus homens ostentavam armas, carabinas e pistolas e o acompanharam olhando para trás, num jogo de cena ensaiado para parecer que tinham visitado um covil de bandidos.
Estamos todos chocados e perplexos. As vísceras da nossa casa estão sendo colocadas à mostra, para parecerem sujas... Durante os interrogatórios o delegado fazia questão de descrever o que ele acredita ter acontecido, chocando-nos com a visão da Alma sendo violada, em detalhes, lutando, sendo... estuprada de todas as maneiras como se.. e ele tivesse presenciado isso, e até... como se ele o tivesse feito! É um sádico e estamos nas suas mãos.
Depois, naquela noite, ao dormir tive um horrível pesadelo, em que eu era a Alma sendo estuprada e acordei em pânico, suada, e até cheia de dores. Olhei-me e... talvez somaticamente, estava sangrando!
Fui para o quarto da doutora, entrei sob suas cobertas e aconcheguei-me a ela que me abraçou, e dormimos assim, abraçadas, graças ao Bom Deus que afinal nos deu uma à outra. Quando
acordamos, para minha vergonha, havia mais a Patrícia e os gêmeos, todos embolados na grande cama maternal da doutora. Só faltavam o Pedrinho, forte guri, e o Rôdo. Ah! Bento, tive a visão de toda a dimensão de minha... de nossa carência. Eu é que deveria tê-los acolhido na minha cama....
Bem, Bento, por ora fico por aqui, que desabafei contigo, poeta de longe, que mal poderá entender, talvez, uma família como esta, um pampa cruel como este, de frio, solitário e eterno minuano...
Mas reza por nós aos teus orixás
Um beijo sofrido
da tua Lucita

Nenhum comentário: