segunda-feira, 28 de julho de 2008

24/05/07

Carta n°2

Querido Bento



Comoveu-me saber que a Alma tem inspirado um poeta como tu, que vens de um mundo tão distante geográfica e culturalmente, o vale do Jequitinhonha, que ouvi dizer que tem maravilhosos ceramistas populares e um folclore riquíssimo.E

que maneira e sotaques deliciosos tem o povo de lá! Vi um documentário uma vez na TV Cultura sobre a tua região, que apesar muito pobre economicamente, é encantadora pela singeleza e beleza da alma de seu povo. Não me conta que Almatenha visitado essa região nas suas andanças, pois ela foi somente para o Nordeste cujo sertão ela descreveu muito bem no seu romance “O Retorno dos Menestréis”. Alma adorava o nosso povo e era recebido carinhosamente por ele.A julgar pelo pessoal de nossa estância, havia a tendência dela ser vista como uma espécie de princesa retornada. Sim, a princesa Isabel, a Redentora, pois a luz e a beleza que emanava dela, faziam o povo reverenciá-la onde quer que fosse. E com que graça ela lidava com eles, os peões e sertanejos!.. Ela assumia naturalmente a postura magnânima, e dadivosa, tocando-os e sorrindo de uma maneira.... que eles tendiam a adorá-la.. Eu mesma vi cenas comoventes aqui no nosso Pampa. As crianças, então, seguiam-na aos bandos, querendo tocá-la e segurar a sua mão. Pra elas era um princesinha de estória de fadas, ali, rediviva.. Elas a cercavam e ela desfiava estórias encantadoras , que as fazia rir e sonhar acordadas. Eu a observava e meus olhos como os delas ficavam molhados e enevoados, e... e nós a amávamos tanto! Como uma criatura como ela pode nos deixar em tanta dor e mesmo violência? Eu não me conformo, essa é que é a verdade! O delegado da nossa região, que a conhecia, acredita ainda que não foi suicídio, e que pode ter sido assassinato, devido ao desejo que ela despertava em alguns pela sua beleza e candura, e também por certa sensualidade natural, sem nenhuma vulgaridade, que ela realmente tinha. O fato de banhar-se nua na cascata, e às vezes tirar a roupa para caminhar pela campina colhendo flores.... tudo isso era perigoso, na verdade, e pode ter despertado desejos em pessoas más. Mas não posso conceber uma coisa dessas. Quem faria isso? Nesse caso minha irmãzinha seria um mártir, e parece que o povo já a está considerando assim, pois percebe-se já uma tendência na peonada da região, e suas mulheres, a vê-la como uma santinha, a rezar a ela e invocá-la. Eu mesma já vi várias vezes vagando por aqui (como já te contei ) e tentei segui-la. Mas ela desaparece e não sei o que significam as suas aparições, se somente revelam o seu apego a este cenário tão amado por ela, e ao nosso casarão que lentamente se arruína, com a nossa decadência econômica e financeira.. Imagino que mesmo que percamos a estância ela ficará por aqui eternamente, e assombrará os novos donos, mas não sei... Por outro lado, quererá ela mostrar-me algo, algum indício que desvende o mistério de sua morte? Debato-me entre essas duas terríveis probabilidades, pois não há consolo em nenhuma delas. Alma não merecia um destino assim morrer no auge de sua criatividade, juventude e beleza. Ela parecia ainda uma guria, mas quantas paixões, não só amor singelo ela despertava, com sua liberdade ingênua, sua alegria e nudez freqüente e desabrida! Bem que Matilde desesperada a repreendia, exortando a resguardar-se mais... Alma registrou essa relação com sua ex-baba( há muito anos nossa cozinheira e caseira) que era como uma ama ou aia devotada à nossa princesa) em muitos textos, nos seus romance e nos Sonetos Pampianos. Veja isto:



A Casamenteira (de Alma Welt)

Pintei-me nua com grande realismo,
Que ao ver a tela a Matilde até gritou:
“Guria, apaga tudo, isso é nudismo!
Já não basta viveres dando show?”

“ Eu vejo que és nudista empedernida
E estás cada vez mais descarada,
Se eu fosse a tua mãe, a falecida,
Ia dar-te era mais muita palmada!”

“Eu sei que és guapa , mas te guarda,
Vai por mim, que sou casamenteira:
Quem quererá o que não se resguarda?”

“ Se te esconderes afinal te esquecerão
E haverá alguém que ainda não
Te viu pelada, e pague a entrada inteira..”



Pobre Matilde! Em sua simplicidade, quanto ela previu o perigo,

de alguma forma... Quanto ela quis proteger a sua querida guria até de si mesma. Agora Matilde envelheceu muito subitamente e nunca mais sorriu.
Só reza e reza. Desfia rosários sem parar. E haja velas pelo casarão!...

Bem, querido Bento. Aqui estou eu a estender-me muito, na evocação da amada irmã.. Vou parar, certamente para chorar...

Até breve ( tu começaste a ler o livro?) Ai!, só consigo pensar nela...

Um abraço

da Lucia

PS. Já leste a “Evocação de Alma Welt” que o querido Guilherme de Faria acaba de publicar no LL? Já está em primeiro lugar entre os favoritos de Não-Ficção...



Querida Lúcia, vou ler com carinho o livro da nossa Alma, uma poeta que anda inspirando-me sobremaneira, sua história comove-me, fico pensando nas suas palavras, na sua vida, que pelo o que você diz, para mim é um verdadeiro romance. As obras da Alma têm que ser conhecidas pelo povo brasileiro, a literatura dela tem que ser conhecida e divulgada para que muita gente leia e comova-se com seus escritos. Infelizmente a luta do poeta no Brasil é àrdua, muito pouca gente lê e a poesia é tratada como gênero literário menor pelas editoras, mas vamos tocando o barco rumo ao infinito das nossas aspirações, acreditando sempre na transformação que a poesia causa em nosso coração. Lúcia, continue o que Alma começou, tenho certeza e fé no seu talento literário, você escreve maravilhosamente bem,possui fluência, clareza de idéias e principalmente beleza. Pense nisso, escreva contos, poesia, enfim, escreva, acredito na sua instância renovadora no mundo da literatura. Grande beijo e já a tenho como uma grande amiga. Responda-me e deixe seu endereço para que eu possa mandar-lhe um exemplar de um importante jornal literário mineiro que tráz alguns dos meus poemas e mostra a arte do povo do Jequitinhonha, região onde nasci e que ainda hoje povoa de versos os meus escritos. Saiba que mesmo sem a conhecer, nutro um enorme carinho por você, pela Alma, pela história de vocês. De verdade.




--------------------------------------------------------------------------------

From: luciawv
To: poetabento@hotmail.com
Subject: Re: RE: Alma para Bento
Date: Wed, 23 May 2007 11:27:23 -0400



Caro Bento

Enviei a ti o livro da Alma, ontem pelo correio comum. Pode demorar

uns dias a chegar.Estou em São Paulo para tratar de possíveis futuras
edições dos textos da Alma com o Guilherme de Faria ,
que está ilustrando lindamente e publicando de forma
artesanal os "Sonetos Pampianos da Alma" (há já um exemplar na Livraria
Teixeira da alameda Lorena). Os livrinhos vem dentro de uma caixinha
linda de madeira e têm ilustração a cores na capa de cada um (são doze)
perfazendo os 150 ultimos escritos por ela e outros mais antigos, num total
de mais de 200 sonetos que tem o pano de fundo do nosso Pampa. São uma
riqueza, e não posso lê-los sem chorar (pela beleza e pela
saudade). Gostaria que tu os conhecesse.

Quanto aos Contos da Alma, gostaria que tu acusasse recebimento

quando chegar, e depois de teres lido me comunicasse as tuas
impressões. Eu considero o livro belíssimo, e muitas pessoas que os leram
também. São os contos da experiência paulistana de minha irmã, com
exceção de um deles: "Na trilha dos Menestréis", lindo
e emocionante, passado no nordeste, numa viagem que Alma fez a Olinda,
quando já estava morando em São Paulo. Descobri que ela valorizava tanto
esse conto ( que foi o que motivou o editor, que o leu, a publicar o
livro) que escreveu um romance, "O Retorno dos Menestréis", muito
erótico, belíssimo e divertido, e que é uma continuação do conto. Descobri
que Alma o publicou inteiro em capítulos no Recanto das Letras, mas que foi
apagado junto com suas páginas e seu Site de Escritor. Felizmente eu
descobri um exemplar digitado e encadernado em espiral, na escrivaninha
abarrotada da Alma. Li, chorei e ri muito.

Espero, caro poeta, que te encantes, comovas e te divirtas com as obras

da tua colega, nossa querida Alma. Estando com seus livros eu a sinto perto
de mim, e por isso os ando carregando para todo lado. É
impressionante como ela está viva nos seus textos e poemas. Ela
realmente pôs sua alma, sua beleza e seu coração neles.

Até mais

um abraço da Lucia



Cara Lúcia, bonito relato, acredito sim que uma pessoa amada

mesmo pós-morte possa surgir no nosso campo de visão fazendo valer a força
do espírito. Tente sim publicar as obras da Alma, sei que é difícil editoras
que publicam poesia, mas tente, arrume uma maneira de publicar independente
de editoras, meus livros são publicados assim, às próprias custas e em
pequenas tiragens, essa é a luta do poeta no contexto literário atual.
Gostaria muito de receber o livro de contos da Alma, meu endereço : Rua
Buenópoles 33/306 - Cep. 31015-120 - Bairro Floresta - Belo Horizonte - MG.
Ficarei esperando a beleza que deve ser o livro da Alma. Beijos do
Bento.

Nenhum comentário: