segunda-feira, 28 de julho de 2008

Carta n°16


Querido Bento

Adorei saber de ti, de tua vida tão interessante, saudável e dedicada à poesia e à cultura. Envia um abraço meu à minha xará.

Olha, sou viúva, tenho 38 anos, e quatro filhos( dois meus mesmo e dois de minha falecida irmã Solange. Não me considerei nunca bonita por causa da comparação com a Alma, mas últimamente as pessoas parecem considerar que sim, que tenho alguma beleza, peculiar. Sou sagitariana, gosto também de literatura e música boa, de todos os gêneros( também não gosto da caipira, que coincidência) mas principalmente clássica, pois em casa, na estância, crescemos ouvindo os grandes clássicos, principalmente os românticos, na "vitrola" e no piano tocado pelo Vati, no seu Steinway. Meu pai era médico, mas principalmente um grande pianista. Era um homem cultíssimo, erudito mesmo, e nos educou dentro de uma visão da cultura universal sob o paradígma grego, unido ao do romantismo alemão. Goethe era o seu Deus. Mas ele admirava muito também Dostoiévsky. Bem... tudo o que é grande, com o Shakeaspeare, e tantos, até chegar em Guimarães Rosa, que me deslumbrou já aos 17 anos. Eu sempre li muito. E a Alma também. Escrevíamos poemas desde pequenas, mas a Alma era mais segura e mostrava seus poemas para o Vati e para nós. Ela tinha uma confiança ... que fez com que se impusesse muito cedo como a "artista da família" além do próprio Vati. Eu escondia os meus poemas a ponto dele nem saber que eu os escrevia. Creio que nem a Alma sabia. Ela era apaixonada pelos dois homens da casa, o Vati e nosso irmão Rodo. Esse era e é uma mistura fascinante de artista e homem de ação. E muito belo também.Qualquer dia te falarei mais dele e de sua história. Mas, pobre Rodo, até agora não se recuperou da morte da Alma e está um tanto esquisito. Bem tenho que falar de mim, não é verdade? Tenho dificuldade...

Bem, nossa mãe era muito bela, de cabelos e olhos pretos e pele muito branca.Era neta de Açorianos. Tu viste que a Alma a chamava "'a Açoriana", e tinham problemas uma com a outra, pois minha mãe temia um destino de artista para qualquer um de nós, não sei bem porquê. Ou talvez agora saiba, depois do que aconteceu com a Alma. Mas nossa mãe, Ana Morgado, faleceu quando eu tinha19 anos e a Alma 16. E tinhamos uma irmã mais velha que foi a asa negra da Alma, na nossa infância e tornou-se mesmo sua inimiga quase até o fim (no momento da morte pediu perdão à Alma). Ela foi assassinada pelo meu marido Geraldo, que numa disputa pela herança de nosso pai, se revelou um verdadeiro bandido. Ai! Bento, tenho até vergonha de contar essas coisas, pois minha família acabou desfuncional, e até mesmo trágica. Para saber tudo o que aconteceu, sería melhor tu leres o romance autobiográfico da Alma, A Herança, que está ainda inédito. Se quizeres vou fazer uma cópia xerox para enviar a ti.

Dou-me conta, ao querer falar de mim, que estou dentro de uma saga de família, romanesca e quase absurda. Tanto mais que agora nossa estância está assombrada pela Alma, e só se fala disso por aqui. Há um culto dela aqui no nosso pampa, e os peões já inventam lendas sobre ela. Alguns já a viram vagando pelos arredores do casarão e até na pradaria. Há um um umbu, na colina, do "enforcado" que eles dizem que ela aparece em noite de lua cheia, chorando e estendendo os braços para a lua.Já foi vista também galopando em pelo, de noite, nua, como ela fazia mesmo, às vezes.

Olha, perdoa, Bento, Tenho que interromper. Qualquer hora continuo este depoimento, meus filhos estão precisando de mim.

Um abraço

da Lucia


(Claudio Bento respondeu):

Lúcia, minha querida, tenho 47 anos, sou do signo de libra, nascido no dia 8 de outubro de 1959 na cidade de Jequitinhonha, nordeste de Minas Gerais, a meio caminho do sul da Bahia, da costa do descobrimento que abriga as cidades de Porto Seguro, Canavieiras, Belmonte, Caraívas, Trancoso, Caravelas, Santa Cruz de Cabrália.
Não sou casado legalmente mas moro com uma pessoa que por coincidência chama-se Lúcia. Não tenho filhos, mas ela já tem uma moça de 26 anos e um garoto de 14 anos. Vivi no Rio de Janeiro por algum tempo trabalhando numa agência de publicidade de um amigo carioca, posso dizer que foram os melhores anos da minha vida, o Rio é uma cidade que adoro, suas praias, suas ruas, seus bairros suburbanos, sua alegria, sua música, sua sensualidade, seu calor. Do Rio vim para Belo Horizonte para viver com a minha atual mulher. Belo Horizonte é uma cidade ainda cheia de conservadorismo, o mineiro é um ser conservador, é uma cidade grande com mais de 2 milhoês de habitantes, mas que ainda preserva sua antiga condição provinciana. Os mineiros não são em nada iguais, digo que o mineiro são muitos, Minas são várias, como disse o nosso Guimarães Rosa. Minas possui vários sotaques. hà mineiros que falam carioca ( a região da zona da mata, cuja principal cidade é Juiz de Fora ) , há mineiros que falam como paulistas ( a região do sul de Minas onde localizam-se Três Corações, Varginha, Três Pontas ), há mineiros que falam baiano ( como na região norte e nordeste de Minas, onde nasci falando baiano e comendo macaxeira, bebendo refresco de juá e jenipapo e vivendo sob um sol escaldante de mais de quarenta graus, região que abriga as cidades de Montes Claros, Almenara, Jequitinhonha, Pedra Azul, Januária e Pirapora ), enfim, Minas é uma grande diversidade, um grande caldeirão de culturas e costumes.
Sou neto de índios, os bravos índios que viviam em Jequitinhonha e que foram quase que totalmente exterminados, restando hoje um pouco mais de dois mil índios que vivem nas reservas de Àgua Boa e Pradinho em Maxacalis, Vale do Jequitinhonha. Minha avó era índia e minha mãe, fruto de muitas misturas que formaram o nosso povo e que é a nossa beleza maior.
Sou autodidata em tudo que faço, não frequentei universidades, mas ironicamente trabalho publicando livros, ministrando oficinas de literatura, cursos de produção de poesia.
Gosto de praia, de uma honesta cervejinha nos finais de semana, do Clube de Regatas Flamengo, da Estação Primeira de Mangueira, dos santos do candomblé, da beleza litúrgica das procissões católicas, apesar de não exercer essa religião, sou agnóstico, acredito piamente que Deus é uma criação do homem e não o contrário. Acredito sim na espiritualidade das coisas, na força do amor e da bondade, na verdade do coração dos homens.
Apesar de não ter estudado muito, li muitos livros de literatura nacional e internacional, posso entender alguma coisa de espanhol, admiro o cinema de Almodóvar, de Godard, de Pasolini, de Vitório De Sica, de Tornattore, de inarritu, de Glauber, Nelson Pereira dos Santos, Roberto Santos, Cacá Diegues e outros tantos bons cineastas brasileiros ou não. Aprecio as músicas de Chico Buarque, Caetano Veloso, Gal, Bethânia, João Gilberto, Ary Barroso, o gaúcho Lupiscínio, Villa-Lobos, Cartola, Nelson Cavaquinho, Joan Baez, Bob Dylan, Beatles, Stones e outros muitos cantores e compositores deste mundo de meu deus. Só não suporto essa música dita caipira que acho de um tremendo mau gosto. Sou um cara urbano, entristeço-me por bastante no ambiente rural, por isso não tive contato com fazendas, com o mundo dos currais, dos arreios, do gado, o que fazia-me diferente dos outros garotos da minha cidade que viviam montados em cavalos e burros. Em vez de viver essa vida rural, vivia na pequena e velha e única biblioteca da cidade lendo Graciliano ramos, José Lins do Rego, Jorge Amado, Raquel de Queiróz, Mário Quintana, Gilberto Freyre etc. E vendo filmes, claro, no cinema da cidade.
Lúcia, meu amor, creio ter expressado um pouco da minha humilde vida mas que aprecio por demais. Aqui em BH não há praia, mas existe uma vida cultural satisfatória, cinemas, teatros, centros de cultura, shows. Aqui não animo muito para sair e beber cerveja nos bares, que são muitos, prefiro ligar meu aparelho de som aos domingos e tomar a minha cerveja, já que a minha companheira que é professora também aprecia a sagrada cervejinha de final de semana.
Acho que revelei um pouco de mim, mas fiquei curioso para saber de você, mande-me uma fotografia por email, fale de você, da sua vida.
Um grande beijo cheio de carinho.

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