segunda-feira, 28 de julho de 2008

Carta n°21


Bento meu

Perdoa-me mil perdões por te ter deixado por um dia, preocupado, sem notícias. É que me divido entre as tarefas do dia-a-dia na estância, cuidando de todos: as amadas crianças, minha hóspede querida, e o amado Rôdo, que parece desnorteado. A idéia de que Alma não se matou, foi morta, reabriu nele as feridas (na verdade em todos nós). Rôdo não sabe o que fazer, mas quer matar alguém, e como um rei de tragédia grega se arranhou todo, chegou a pegar uma faca e começou a se cortar, aos urros. Foi preciso o Galdério, Matilde e eu para contê-lo. Pobre e desesperado irmão! Ele amava a sua Alma além de qualquer medida. Ele a amava como... o amor de sua vida, essa é que é a verdade! Ele vivia pelo mundo, correndo de carro, de cassino em cassino, jogando, jogando, mas era para tentar fugir da Alma, para fugir de si mesmo. Mas voltava sempre, voltava. Era mas forte que ele, pois, a verdade, Bento é que a tivera mesmo em seus braços, tantas vezes, e isso o destruia ou o mantinha vivo, não sei. Somos uma família decadente e trágica, pobre Bento, que deves estar com o cabelo em pé, ouvindo estas barbaridades. Mas talvez não, pois és poeta e portanto tudo podes compreender e perdoar.
A doutora Jensen se apegou a nós e ficará por aqui, que implorei a ela, que fique, que fique para sempre, como nossa mãe ou irmã mais velha, e ela cedeu, porque já nos ama como sua família. Ela nos ajudará a nos ajustarmos, nos recompormos.

Bento, agora falemos de ti. Gostei da tuas notícias, em saber das tuas atividades em Mariana e Ouro Preto. Esta última eu conheci, há tempos e fiquei impressionadíssima com seu clima interior. Eu a visitei lendo o Romanceiro da Inconfidência, da Cecília Meireles, e fiquei tomada de suas memórias, de seus mistérios. Minas é o berço de nosso sentimento de liberdade, Bento, e as paredes ainda sussurram, como os mineiros sussurram até hoje suas inconfidências, enquanto nós gaúchos nos alardeamos, nos pavoneamos em farrapos.
Bento, quanto à morte de sua sogra, lamento, deves ter sofrido... e tua mulher. Envia-lhe meus pêsames. Tu pareces que a apreciavas.

Vai, Bento, curtir o Festivale, o festival do teu vale encantado, que bem mereces.não olhes para trás, senão para a tua boa infância. Não penses nestes gauchos loucos, atormentados, perdidos no turbilhão sem fim do minuano, onde Alma, como Francesca agarra-se ao seu Paolo, o espírito de Rôdo, sem pouso os dois, sem descanso. Ai! aqui estou eu com metáforas... que vergonha ser esta pobre poeta menor, povoada dos versos dos grandes, dos versos da própria Alma, irmã errante de minh' alma.
Mas não te preocupes, meu Bento quanto ao delegado nefasto. Ele veio talvez como a verdade, a Verdade, que esta família sempre evitou, nesse nosso sonho romântico herdado de nosso pai. Tentaremos sobreviver à verdade crua. Ai!!!

Bento, querido amigo sincero, vamos nos falando... contando... eu às vezes chorando (paciência...)

Um beijo da tua Lucita





Lucita, meu bem maior, recebeste minhas duas cartas que enviei no sábado e no domingo ? Estou preocupado com você, o delegado voltou à carga ? Fico pensando comigo que esse homem é louco, sádico, irresponsável, tudo de ruim que uma pessoa possa guardar no coração.

O poema que escrevi para você foi sucesso no lançamento do Festivale, em meio à cervejada geral pensei em ti aí no pampa açoitado pelo minuano, pelo frio que deve fazer nesta época do ano. Voltei para casa antes da meia-noite, o apartamento vazio, o espectro da morte da mãe da minha mulher ainda vivo na lembrança, o sofrimento dela, a dor, o vale de lágrimas. A minha sogra morreu no último sábado assim de repente lá no vale, foram todos, fiquei eu aqui cuidando das coisas, lendo, preparando uma oficina de uma semana que darei a partir do dia 20 deste mês na cidade de Joaíma, Vale do Jequitinhonha.
Escreva-me querida, não me deixe sem notícias, gosto muito de você, gosto mesmo, é estranho e gostoso ao mesmo tempo a gente se relacionar assim, é algo novo para mim, mas estou gostando muito dessa amizade sincera. Beijo grande do Bento.

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